quinta-feira, 4 de julho de 2013

A construção de conhecimentos pertinentes na educação escolar


A construção de conhecimentos pertinentes na educação escolar com base no paradigma da complexidade

Celso José Martinazzo1
Resumo
 
Neste estudo investigamos a importância dos princípios e categorias do paradigma da complexidade para a construção de conhecimentos pertinentes na educação escolar. As discussões e reflexões em torno das possibilidades de aproximação do pensamento complexo, em qualquer campo do conhecimento sistematizado, estão apenas no seu início. Embora, tais reflexões pareçam muito restritas a grupos de pesquisadores especializados, começam a emergir estudos interessantes, ainda que de forma incipiente, também no campo da educação escolar, do processo ensino-aprendizagem, das práticas pedagógicas e das pesquisas acadêmicas. Movidos por esse desafio vamos adentrar nessa reflexão. Nosso objetivo consiste em detectar alguns pontos de aproximação entre os pressupostos da teoria da complexidade de Edgar Morin e a educação escolar com vistas à produção de conhecimentos pertinentes que possibilitem uma adequada compreensão do mundo. A educação escolar apoiada na concepção complexa da realidade pode promover a produção de conhecimentos pertinentes, em que docentes e discentes aprendam a se situar e a se compreender no universo onde vivem, convivem e atuam para poderem construir uma identidade individual, da espécie e da sociedade num mundo com características planetárias.

Palavras-chave: Teoria da Complexidade. Educação Escolar. Conhecimento Pertinente.
The construction of pertinent knowledges in the school education on the basis of the
complexity paradigma Abstract


In this study we investigate the importance of the principles and categories of the complexity
paradigm for the construction of pertinent knowledges in the school education. The discussions and reflections around the approaching possibilities of the complex thought, in any field of the

 systemized knowledge, are only in its beginning. Although such reflections seem very restricted to groups of specialized researchers, interesting studies start to emerge, yet in incipient form, also in the field of the school education, of the teaching-learning process, of the pedagogical practices and of the academic research. Moved for this challenge we are going to enter in this reflection. Our goal consists in detecting some points of approach between the presuppositions of the complexity theory of Edgar Morin and the school education aiming the production of pertinent
knowledges that make possible an adequate understanding of the world. The school education supported in the complex conception of the reality can promote the production of pertinente knowledges, where professors and students learn to situate theyselves and to understand theyselves in the universe where they live, coexist and act to be able to construct an individual identity, of the species and of the society in a world with planetary characteristics. 

1 Celso José Martinazzo é Doutor em Educação pela UFRGS. É Professor Titular do Departamento de Humanidades e Educação da UNIJUÍ. Publicou artigos em revistas e capítulos de livros. É organizador e co-autor do livro Histórias de vida de professores: formação, experiências e práticas (Editora Unijuí, 2000) e autor dos livros A utopia de Edgar Morin: da complexidade à concidadania planetária (Editora Unijuí, 2002). Pedagogia do Entendimento Intersubjetivo: razões e perspectivas para uma racionalidade comunicativa na Pedagogia (Unijuí, 2005).
Keywords: School Education. Complexity Theory. Pertinent Knowledge.

Introdução: repensando os propósitos da educação escolar na sua dimensão cognitiva
A educação, no sentido amplo, ao longo da História, sempre teve como uma de suas principais finalidades garantir a transmissão dos saberes historicamente produzidos, ou seja, o legado cultural da geração mais adulta para a mais jovem. A crescente complexificação da produção cultural leva a sociedade a criar um órgão que se encarregará de garantir de forma sistemática a transmissão desse legado às futuras gerações. Por esta razão organiza-se um sistema
de educação escolar e elege-se, como sua tarefa universal e central em todos os sistemas de ensino, o cultivo do desenvolvimento intelectual dos aprendentes para que eles possam assimilar os conhecimentos historicamente elaborados, bem como produzir novos saberes.
O desenvolvimento das capacidades mentais, desde sempre, teve como pressuposto o incremento de atividades intelectuais, o exercício de operações conceituais e mentais da razão de forma que ela pudesse apropriar-se do conhecimento, remodelando-o a seu talante. Com isso, reforçou-se ainda mais o foco da escola que, historicamente, consolidou-se nessa tarefa de transmissão e de assimilação de conhecimentos e da cultura de forma geral. A tarefa de transmitir aos alunos o conhecimento construído passou, gradativamente, a ser prerrogativa da escola, que de forma simultânea também se encarregou da formação de outras dimensões importantes do aluno como a moral, a cívica, a religiosa, a física e a ética. A presença dessas dimensões da educabilidade humana, no espaço da educação escolar, no entanto, foi quase sempre algo não
nuclear, mas periférico, subsidiário, complementar, transversal. A dimensão nuclear da escola como uma instituição sociocultural e que sempre a caracterizou ocupando a maior fatia do seu tempo foi, sem dúvida, a dimensão intelectual. Em tese, fazer o aprendiz assimilar a produção cultural clássica e científica que a humanidade produziu e acumulou ao longo dos séculos de História sempre foi a finalidade primordial da escola.
Se, paulatinamente, a escola passou a assumir essas grandes tarefas temos de concordar que, ao longo desse percurso, ela tem incorrido em inúmeros equívocos na forma de conceber, organizar e conduzir o processo didático-pedagógico. Poderíamos perguntar: De que forma a escola exerceu essas suas grandes tarefas? Com quais ferramentas ela operou para garantir tal função que lhe foi atribuída? Enfim, para que serviu e para que está servindo a instituição escolar no que diz respeito a sua natureza e especificidade de lidar com a questão do conhecimento?
Outras perguntas mais específicas também esperam por respostas: Tomando como ponto de partida a modernidade pedagógica, como a escola enfrentou esse desafio de desenvolver no educando uma competência intelectual? Com qual paradigma epistemológico ela operou e ainda está operando para promover tal competência? Qual modelo de racionalidade a escola tem privilegiado? Se o propósito da escola é garantir que o aluno aprenda, será que as atuais formas
de gestão do ensino estão garantindo a sua aprendizagem? O aprender é necessariamente uma decorrência da ação docente, como os dirigentes educacionais costumam pressupor? A ênfase no
ensinar é suficiente para garantir uma competência intelectual para que o aluno aprenda? Enfim, o questionamento que está exigindo uma resposta satisfatória e de que nos ocuparemos neste estudo é: Se a escola não tem sido eficaz no sentido de produzir saberes como ela pode transformar-se numa agência produtora de conhecimento pertinente?
Se remontarmos à história da organização escolar, desde a época antiga, passando pela modernidade até os tempos contemporâneos, constataremos que o conhecimento que circula no interior da escola foi produzido por intelectuais ou pesquisadores em instâncias fora desse espaço específico. Quase não há pesquisa na escola. O conhecimento, nesse caso, é visto como informação, notícia, ciência. A escola seleciona os conteúdos, considerados úteis para os alunos.
Os professores se esmeram em transmitir o conhecimento para os educandos, ainda que de forma disciplinar, fragmentada e descontextualizada. Os aprendizes, por sua vez, vão à escola para
“buscar conhecimentos” que lá se encontram registrados e armazenados. Os educandos procuram assimilar os conhecimentos transmitidos pelos professores sem, no entanto, aprender como
construí-los de forma pertinente, ou seja, aprender a aprender e aprender a conhecer com pertinência.
É tarefa imprescindível da escola, no tempo atual, preocupar-se não apenas com o conteúdo em si, com o repasse do conhecimento existente para os alunos. À escola cabe a tarefa privilegiada de mediação da construção de conhecimentos. Freire e Shor (1997, p. 18) esclarecem esta questão de forma muito convincente na passagem que segue:


 [...] se observarmos o ciclo do conhecimento, podemos perceber dois momentos, e não mais do que dois, dois momentos que se relacionam dialeticamente. O primeiro momento do ciclo, ou um dos momentos do ciclo, é o momento da produção, da produção de um conhecimento novo, de algo novo. O outro momento é aquele em que o conhecimento produzido é conhecido ou percebido. Um momento é a produção de um conhecimento novo e o segundo é aquele em que você conhece o conhecimento existente. O que
acontece, geralmente, é que dicotomizamos esses dois momentos, isolamos um do outro.


Conseqüentemente, reduzimos o ato de conhecer do conhecimento existente a uma meratransferência do conhecimento existente (grifo do autor).
Repensar os propósitos da escola em relação ao conhecimento requer redirecionar os seus
rumos. É necessário transformar a escola numa instância mediadora e facilitadora das aprendizagens dos alunos. Para tanto, escola e professores precisam rever suas metodologias de
ensino e suas estratégias didáticas para que o aluno aprenda a aprender, aprenda a conhecer, enfim, aprenda a pensar bem.
 
 
Cenários modificados e novas exigências para a educação escolar
 
A partir de meados do século XIX as novas descobertas científicas provocam uma verdadeira transformação no campo das ciências e acarretam mudanças significativas nos paradigmas vigentes. Esses avanços determinam uma profunda revolução nos pilares básicos da ciência clássica moderna. As grandes descobertas extraídas, sobretudo, do campo da Física e da Biologia, promovem mudanças no modo de conceber o homem e o mundo, na forma de operar com tecnologias, de gerenciar os tempos e espaços e de produzir bens e mercadorias.
Quais são essas grandes mudanças e transformações nos diferentes campos do conhecimento e das ações humanas e que devem figurar na educação escolar? Destacamos nesse novo cenário, para fins deste estudo, o avanço das pesquisas da ciência que resultaram numa compreensão sistêmica e complexa da vida, dos sistemas vivos, de si mesmo e do conhecimento e que opera com categorias como sistemas organizativos aprendentes, complexos, solidários, autoorganizativos e autopoiéticos. As chamadas ciências da vida e outros ramos da ciência, hoje, estão comprovando que a configuração da vida é essencialmente ação cognitiva, auto-eco-exoorganizativa e aprendizagem. Vive-se de aprender e aprende-se de viver.
O repensar dos paradigmas da ciência e do conhecimento põe frente a frente dois tipos de pensamento: um do tipo cartesiano moderno, denominado de simplificador, e o outro conhecido
como pensamento complexo (Morin, 2000a). Santos (2000) entende que o período moderno foi
construído sob o paradigma da regulação e da ordem e em “A crítica da razão indolente” utilizasse da expressão “epistemologia da cegueira” para se referir às formas de representação da
realidade produzidas e, segundo ele, distorcidas pelo paradigma científico da modernidade onde o ver, o analisar e o conhecer de forma parcial e reducionista são entendidos como uma
compreensão plena do real.
É tarefa da escola identificar esses novos cenários para poder justificar e ressignificar seu projeto de instituição escolar, caso contrário ela desaparecerá por obsolescência. É isso que nos move a repensar os caminhos e as funções didático-pedagógicas da escola nos modelos tradicional e moderno em que sempre esteve ancorada.
A escola, todavia, parece ignorar esses avanços da ciência e, por conseqüência, não conseguir lidar com essa característica própria dos seres vivos que é a capacidade de buscar as aprendizagens necessárias e significativas para a auto-organização, equilíbrio e sobrevivência.
Ela insiste em querer garantir conhecimentos e aprendizagens para os alunos transmitindo notícias, dados, informações, fatos históricos e fenômenos sob o visor das categorias do paradigma simplificador decorrentes de princípios das ciências clássicas da modernidade. Por esse motivo, as críticas que são direcionadas à incompetência da escola são cada vez mais contundentes. A escola, ao adotar os modelos simplificadores e disciplinares de acesso ao conhecimento, orienta-se pelo paradigma cartesiano: um pensamento redutivo e disjuntivo que opera com o método e a lógica indutiva, dedutiva e identitária. Esses princípios compõem o cenário do paradigma simplificador. Por esta razão Morin (2000a, p. 13) adverte: “Há inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários”.
No conhecimento disciplinar formal o aluno apreende partes desligadas do seu todo; identifica objetos desconectados do sistema; incorpora sentidos e verdades sem vinculação com o
contexto histórico; assimila a idéia de uma ordem mecanicista presente no cosmos; apreende conceitos abstratos e assépticos sem ligação com o mundo da vida e o concreto; analisa a relação
causa-efeito num sentido linear, ignorando as incertezas. É necessário e imprescindível, pois, aprender a pensar, e isso requer um novo enfoque na forma paradigmática de apreender e compreender o real: exige operar com paradigmas cujas categorias possibilitem perceber as redes de conexões ocultas (Capra, 2002) que religam os saberes; que remetam a um saber
inter/poli/multi/transdisciplinar e, até mesmo, indisciplinar; enfim, que promovam conhecimento contextualizado, multidimensional, multiocular e multirreferencial sobre o real.
Compartilhamos com o diagnóstico apontado por Morin (2000a) quando argumenta que o desafio dos desafios que a escola necessita enfrentar, hoje, é o de promover uma reforma do pensamento que resulte numa produção de conhecimentos pertinentes. Segundo este autor
(2000a, p. 20; itálico no original): “A reforma do pensamento é que permitiria o pleno emprego da inteligência para responder a esses desafios e permitiria a ligação de duas culturas dissociadas. Trata-se de uma reforma não programática, mas paradigmática, concernente a nossa aptidão para organizar o conhecimento”. O pensamento fechado, fragmentado, simplificador é, segundo Morin, a barbárie do pensamento. Precisamos civilizar o pensamento, e pensamento civilizado é aquele que consegue dialogar com a complexidade do universo, ou seja, com os sentidos inesgotáveis e sempre abertos do real.
A partir da última década do século XX os discursos das autoridades educacionais deslocaram-se do enfoque sobre o investimento na democratização do acesso do aluno à escola para o da democratização da qualidade do processo educacional. Os alunos, no entanto, com
certeza têm muito pouco a comemorar no que se refere à qualidade do processo de ensinoaprendizagem, à durabilidade do aprendido, à continuidade e ao sucesso escolar e, sobretudo, em relação à própria vida. Isso nos leva a concordar com Morin sobre a necessidade de uma reforma de ensino de cunho paradigmático e que resulte em conhecimentos e aprendizagens pertinentes.
Por si só, as reformas operacionais, quantitativas e programáticas pouco podem acrescentar se não forem acompanhadas de reformulações na base dos processos cognitivos.
A reflexão e o debate que consideramos central para um redirecionamento qualitativo da educação tendo em vista uma melhoria de todo o processo educativo devem girar em torno da questão paradigmática. Por isso, estamos apontando para a necessidade de uma profunda discussão em termos de reforma paradigmática da educação deixando, em segundo plano, os aspectos operacionais e procedimentais que sempre ocuparam o centro das preocupações institucionais. A reforma paradigmática é tida, hoje, como o desafio dos desafios educacionais.
Uma reforma paradigmática, via de regra, traz como conseqüência uma mudança programática e operacional. O inverso, porém, nem sempre se confirma. O que se pode entender por reforma do pensamento? Reformar o pensamento significa promover uma transformação em suas estruturas que o capacite a conhecer por meio de princípios organizadores do conhecimento complexo, tornando-o apto a captar a real complexidade da realidade. Busca-se desenvolver um pensamento pertinente que possa operar com os princípios da complexidade - princípios da dialogia, do holograma e do anel recursivo - que habilitem os aprendentes a perceber as relações que se estabelecem entre as partes e o todo e vice-versa. Esse caminho nos permite entender o núcleo do pensamento complexo que se revela
enquanto unitas e multiplex, ou seja, a unidade na diversidade.
Quaisquer outras providências ou tomadas de decisão visando a qualificar o processo de educação escolar não vão resultar em grandes avanços na função fundamental da escola, qual
seja, dar conta dos processos de ensino e de aprendizagem e, sobretudo, do conhecimento. Assim sendo, é fundamental repensar as formas paradigmáticas de produção de conhecimentos pertinentes. Sem reforma paradigmática do pensamento vamos continuar escolarizando levas de
alunos semiletrados e analfabetos. “Não haverá transformação sem reforma do pensamento, ou seja, revolução nas estruturas do próprio pensamento. O pensamento deve tornar-se complexo”
(Morin, 2000c, p. 10).
Por acreditar na função decifradora e transformadora dos paradigmas é que Morin, em seus escritos mais recentes, propõe uma reforma paradigmática radical do pensamento. Tal reforma deveria alicerçar-se na teoria, no método, no pensamento, na estratégia da complexidade, com aplicação no campo da educação escolar, para ir além das concepções simplificadoras do conhecimento. Para tanto, este estudioso postula a organização de um processo pedagógico, centrado no paradigma da complexidade, que tenha como meta-fim desenvolver nos educandos uma aptidão geral para compreender e enfrentar os problemas, para contextualizar e globalizar os saberes levando em conta os princípios organizadores do conhecimento que religam os saberes e lhes dão sentido (Morin, 2000c, 2001). A consecução dessa meta-fim tem como condição primeira o aprofundamento de uma concepção transdisciplinar daquilo que é considerado pertinente e indispensável para cada aprendente.
A escola, para garantir sua tarefa de promover a competência cognitiva dos alunos, precisa tornar-se ela mesma uma organização criadora de conhecimento. A escola, sob o ponto de
vista de um sistema complexo, constitui-se em um sistema aprendente. De modo que teríamos um elo recursivo entre reforma do pensamento, reforma da educação escolar, produção de
conhecimento pertinente pela comunidade aprendente e escola como um espaço de organização criadora de produção de conhecimento.
A leitura e a escrita do mundo, enfim, a compreensão da realidade, hoje, estão a exigir uma racionalidade complexa que transcenda as aprendizagens rotineiras, triviais edescontextualizadas que permita ao aluno religar os saberes, captar as conexões ocultas da realidade e a se relacionar consigo mesmo e com os outros, enfim, que saiba viver sua cidadania terrestre numa terra-pátria de todos.
 A participação na solidarização do planeta pressupõe uma compreensão hologramática da condição humana constituída pela tríade indivíduo/espécie/sociedade. Por isso, aprender na e pela complexidade tornou-se uma exigência inquestionável nesta era planetária. A grande questão que se impõe, neste momento, como um desafio, é: será possível repensar o panorama atual do processo educacional como um todo sem ressignificarmos os paradigmas que inspiram, orientam e dominam a práxis pedagógica e educacional?
A revitalização do processo educativo e das práticas pedagógicas de ensinoaprendizagem, à luz do pensamento complexo, pode situar a escola num outro patamar quanto às possibilidades de leitura, escrita e compreensão do mundo conforme o desejo manifestado pelo próprio Paulo Freire (1994). É necessário, no entanto, ter consciência de que, mesmo à luz do pensamento complexo, não há um caminho seguro que nos garanta uma leitura e compreensão do mundo. Por isso, é importante levar a sério o alerta que Costa (2003, p. 270) nos faz com a afirmação: “Não há etiquetas, não há informações para explicar o mundo que estejam no mundo; é o sujeito complexo, que incorpora as antinomias, razão e desejo, e que traduz as mensagens do mundo exterior, filtrando-as pela emoção e afetividade”. Assim entendido, impõe-se como imprescindível para o processo de educação escolar repensar a estrutura paradigmática responsável pela assimilação, apropriação e produção de conhecimentos e que determina, igualmente, a própria compreensão da realidade.



 
 

Pensamento complexo e conhecimento pertinente


 
A forma como os humanos constroem o conhecimento constitui ainda um campo pouco esclarecido pelas pesquisas científicas. Com certeza, porém, podemos afirmar que o conhecimento é sempre algo resultante de uma forma paradigmática de pensamento. Ele é fruto de modelos inscritos em nossas mentes. Nós produzimos conhecimento por intermédio de nossa forma de operar o pensamento. De forma que “[...] nossa mente só vê o que está preparada para ver, isto é, está condicionada” (Mariotti, 2000, p. 37).
Morin, ao insistir na necessidade de uma reforma do pensamento, está se referindo a uma mudança da estrutura do pensamento. Um modelo de pensamento produz determinado padrão de conhecimento. Nesse sentido, a preocupação com as formas de pensar, ou seja, de acessar, organizar e de produzir o conhecimento, antecede o conhecimento em si. O pensamento e não o conhecimento é o capital mais valioso do indivíduo e da sociedade. Morin (2000a, p. 18) entende que: “O pensamento é, mais do que nunca, o capital mais precioso para o indivíduo e a sociedade”. A busca de uma mais profunda compreensão epistemológica do real justifica a posição de pensadores que tanto insistem numa reforma do pensamento.
A complexidade do real demonstra a não-linearidade da História e de qualquer tipo de evolução ou de transformação e, logicamente, na não-linearidade está implícita uma parcela de desordem, de caos, de imprecisões e de eventualidades. Nessa direção argumenta Demo (2004, p.14): “Por trás do que se mede, observa, cerca, há dinâmicas indomáveis inscritas na própria tessitura dialética da natureza”. Daí porque o conhecimento, hoje, não pode mais ser visto como algo pleno, linear, total, irrecorrente.
A parcela de desordem implícita na natureza e nos fenômenos sociais acarreta também uma grande parcela de imprecisão e de incerteza ao conhecimento. Essa realidade complexa é responsável pelo fim das certezas, das verdades, enfim, do saber absoluto e total. Morin (2001, p.564) sublinha estes dois grandes desafios da complexidade: o primeiro informa que a realidade é um tecido complexo e o segundo, que este tecido comporta a incerteza. Podemos compreender, desta forma, a recomendação que Morin (2000d, p. 16) faz aos aprendentes: “É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a arquipélagos de certeza”.
A práxis do pensamento complexo posto como um desafio metodológico e estratégico para a educação escolar resulta da reforma do pensamento, de uma nova postura epistemológica, de uma forma original de exercer a racionalidade que promova um autêntico diálogo com o mundo. Esse espírito leva Morin (2000c, p. 190-191) a afirmar: “O desafio da complexidade nos faz renunciar para sempre ao mito da elucidação total do universo, mas nos encoraja a prosseguir na aventura do conhecimento que é o diálogo com o universo. O diálogo com o universo é a própria racionalidade”.
Pensar de forma complexa é, por isso mesmo, estar apto a compreender o real que nos cerca, que é, e que desde a gênese do universo foi algo complexo e, portanto, incerto e caótico.
Todos os organismos são fruto de um processo de complexificação que culmina, segundo Morin, no cérebro humano como o exemplo mais acabado de complexidade. A complexidade revela-se na dinâmica da evolução do universo e da vida. Necessitamos de um pensamento que seja capaz de captar essa rede complexa inerente à lógica da realidade. Por isso, as leis e categorias da complexidade pretendem perceber e apreender as leis da vida. Nas palavras de Morin (2001, p.566):
  
Eis os desafios da complexidade e, claro, eles encontram-se por toda parte. Se quisermos um conhecimento segmentário, encerrado a um único objeto, com a finalidade única de manipulá-lo, podemos então eliminar a preocupação de reunir, contextualizar, globalizar. Mas, se quisermos um conhecimento pertinente, precisamos reunir, contextualizar, globalizar nossas informações e nossos saberes, buscar, portanto, um conhecimento complexo.
O pensamento da complexidade é um paradigma que encara a realidade e suas diferentes
manifestações sob um referencial lógico-epistemológico próprio e encaminha as soluções de forma não-simplificadora: religa o que a análise separa, contextualiza o dissociado, reúne o disperso, complexifica o simplificado, historiciza o atemporal e considera o sujeito pensante como produtor e produto de seu pensamento e de suas construções (Martinazzo, 2002).
Pode-se deduzir de imediato que a complexidade não se limita às noções de conteúdo positivo em si, revelando-se algo passível de compreensão, mas, sem dúvida, impossível de sersubmetido a qualquer experimentação positivista. “A complexidade não é tudo, não é a totalidade o real, mas é o que melhor pode, ao mesmo tempo, se abrir ao inteligível e revelar o nexplicável” (Morin, 2000b, p. 266).
A abordagem complexa procura penetrar no âmago da realidade toda, compreendendo os
laços e as relações que envolvem o universo como uma globalidade. “Complexus significa riginariamente ‘aquilo que é tecido em conjunto’” (Morin; Moigne, 2000, p. 209), donde deriva
o princípio hologramático, uma das premissas básicas da complexidade da realidade: tudo se liga tudo e tudo tem a ver com tudo. O paradigma da complexidade, portanto, considera que o
“todo” é uma realidade complexa. “Meu sentido das verdades contrárias e minha recusa das verdades isoladassuscitaram os princípios de um pensamento complexo, isto é, de um
pensamento que relaciona o que, por origens diversas e múltiplas, forma um tecido único e
inseparável: complexus” (Morin, 2000b, p. 257; grifo do autor).
O pensamento complexo possibilita estabelecer um canal de diálogo entre os diferentes
paradigmas: entre o homem e as idéias que ele produz; entre o ser humano e suas racionalizações.
No pensar complexo integram-se pontos de vista distintos, às vezes, antagônicos, concorrentes ou complementares, incluindo os mais diversos campos da racionalidade humana, seja ela mítica,religiosa ou científica. Na complexidade supera-se a explicação linear, a disjuntiva, a redutiva;
tudo é compreendido a partir dos princípios da dialogia, da recursividade e do holograma. Lê-se e interpreta-se a tradição, a cultura e as racionalizações do pensamento procurando nelas as
ligações complexas. Concordamos com as palavras de Knyazeva (2003, p. 98) quando esta autora explica que: “[...] cultivar os princípios do pensamento complexo significa aprender a arte de
pensar”.
Os saberes disciplinares enfocados na escola ofuscam a possibilidade de um conhecimento que Morin (2000a) denomina apropriadamente de “conhecimento pertinente”. A expressão “conhecimento pertinente” é empregada por Morin (2004) para designar aquele saber resultante de uma reforma paradigmática, que nos permite operar com os princípios organizadores do conhecimento complexo, que nos torna aptos a compreender a complexidade das informações no contexto em que elas se inscrevem.
Morin (2000a, p. 15), caracteriza o conhecimento pertinente como sendo aquele [...] “capaz de situar qualquer informação em seu contexto e, se possível, no conjunto em que está inscrita”. A psicologia cognitiva demonstra que a pertinência de um saber consiste em saber situá-lo num contexto sendo simultaneamente analítico e sintético, religando o todo às partes e as partes ao todo. Dessa forma, “o conhecimento pertinente não é fundado numa sofisticação, mas numa atitude que consiste em contextualizar o saber” (2004, p. 86). Um conhecimento pertinente não se caracteriza por conter uma grande quantidade de informações, mas por saber organizá-las.
De acordo com nosso autor (2004, p. 86-87), “o conhecimento pertinente tenta situar as informações num contexto global e, se possível, num contexto geográfico, histórico”.
O conhecimento pertinente torna-se indispensável para enfrentar os grandes desafios de nosso tempo, dentre os quais destacamos a crescente aceleração, ampliação, circulação e produção de saberes novos num mundo globalizado. Por isso, recomenda Morin (p. 87): “Temos, portanto, de ensinar a pertinência, ou seja, um conhecimento simultaneamente analítico e sintético das partes religadas ao todo e do todo religado às partes”.

O conhecimento pertinente é próprio de uma cabeça bem-feita que, no entender de Morin (2000a), não é aquela que acumula e empilha informações desprovidas de sentido por falta de princípios seletivos e organizadores dessas informações. Uma cabeça bem-feita é aquela que dispõe de “uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas” e de “princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar sentido” (p. 21).
A cabeça bem-feita, em Morin, assume o sentido de uma inteligência geral bem desenvolvida. O “pleno emprego da inteligência geral” nos capacita a compreender e resolver problemas. E os princípios organizadores do conhecimento complexo nos livram das amarras dos princípios simplificadores do conhecimento. Estes representam a barbárie, enquanto aqueles a
civilização. E o império da barbárie está no comando do processo ensino-aprendizagem quando voltado para a especialização disciplinar, para a unidimensionalização, enfim, para o
estreitamento da plena racionalidade humana. Daí que, segundo Ciurana (2003, p. 63): “Deveria começar a ser óbvio que também conduz à barbárie uma cultura que, em vez de educar para a
policompetência, educa-nos para a especialização e a unidimensionalização. Estamos pagando caro por isso”.
O conhecimento pertinente, porém, vai muito além dessa compreensão. Ele não só capta e situa as informações no seu contexto como é aquele que está capacitado a perceber a complexidade que é intrínseca a toda a realidade. É um pensamento complexo que procura apreender e compreender as conexões ocultas da realidade complexa. A realidade é algo complexo. No entendimento de Morin a complexidade é algo inerente e fundante da realidade.
Todos os elementos (macro ou micro) que constituem o cosmo caracterizam-se pela complexidade, ou seja, tudo o que é passível de conhecimento forma um conjunto sistêmico: está constituído por uma rede e uma organização de elementos diferentes. “A complexidade não está na espuma fenomenal do real. Está em seu próprio princípio. O fundamento físico do que denominamos realidade não é simples, mas complexo” (Morin, 2000c, p. 272). É por esta razão que Morin define a complexidade como algo que não pode ser simplificado.
Tendo em vista que o pensamento complexo comporta e desenvolve diferentes tipos ou modos de inteligência, “a dificuldade de pensar de maneira complexa é extrema. Quanto mais o espírito enfrenta a complexidade, mais deve complexificar o seu exercício e mais difíceis e múltiplas são as combinações das diferentes qualidades que aciona” (Morin, 2002, p. 103).


Breves considerações finais

Apesar da longa história da humanidade “ainda não existe uma sociedade civil mundial e
a consciência de que somos cidadãos da Terra Pátria está dispersa, embrionária” (2003, p. 11).
Convencido da necessidade e importância de construir uma concidadania planetária, Morin (2000a, p. 103) sinaliza quais devem ser as cinco grandes finalidades educativas: “a cabeça bem feita que nos dá aptidão para organizar o conhecimento, o ensino da condição humana, a aprendizagem do viver, a aprendizagem da incerteza, a educação cidadã”.
Ciurana (2003, p. 55) alerta para o que se pode pretender com o pensamento complexo:






 


O que fazemos é dialogar com o mundo. Nenhum diálogo pode ter como resultado uma total segurança naquilo que é posto pelos interlocutores. A pretensão neopositivista de uma realidade que se refletisse nas teorias científicas como nosso rosto no espelho é uma pretensão quimérica. Um pensamento complexo sabe que sujeito e objeto, não sendo o mesmo, tampouco são radicalmente separáveis. Uma separação total tornaria impossível o conhecimento.

Entendemos, portanto, que a educação escolar deveria promover a veiculação e a construção do chamado conhecimento pertinente que tem sua sustentação na compreensão complexa da realidade. Compreender a realidade sob o ponto de vista da complexidade significa olhá-la, analisá-la e interpretá-la com base nos princípios organizadores do conhecimento complexo tendo em vista que o pensamento científico, embora tenha produzido incontestáveis e significativos avanços para a humanidade, não consegue mais elaborar explicações convincentes sobre a complexidade do real, pois se assenta sobre saberes isolados, especializados e estanques traduzidos em disciplinas compartimentadas e incomunicáveis entre si. O conhecimento pertinente, portanto, é aquele que, em sua gestação e promoção leva em conta os princípios da complexidade.
De modo sintético os principais princípios da complexidade que colaboram com a construção do pensamento pertinente são três: o hologramático ou holográfico, o dialógico e o anel recursivo.
O princípio hologramático ou holográfico (Bohm, 1992) revela que a(s) parte(s) só pode(m) ser entendida(s) em função do todo e vice-versa. Por essa razão, para compreender a tessitura de algo, bem como o significado de um fato ou de um fenômeno, é necessário situá-lo no seu contexto. A construção de conhecimentos por meio da contextualização requer a participação das diferentes dimensões do aprendente, como as emotivas e as corporais e não apenas as mentais. O princípio hologramático reposiciona o aprendiz em relação aos princípios cartesianos básicos, pois, estes ao privilegiar o princípio da simplificação impedem a ligação de noções antagônicas e intercomplementares entre si.
Outro princípio fundamental que corrobora a compreensão da realidade polissêmica é a dialogia. O princípio dialógico Morin extrai da observação do que ele denomina de ‘desordem genésica’ (2003), ou seja, a questão da gênese e da criação do mundo que se apresenta como um princípio de ligação existente entre, de um lado, a desordem e, de outro, a ordem e a própria organização. A partir da observação da cosmogênese Morin deduz o chamado circuito tetralógicoentre ordem/desordem/interação/organização. Esses termos se atraem e se desenvolvem em complexidade crescente, tornando-se, ao mesmo tempo complementares, concorrentes e antagônicos. O operador dialógico contempla as contradições e ambivalências. As organizações vivas constituem um sistema que se reorganiza constantemente com base na dialógica da complexidade. Os seres vivos, portanto, estão submetidos a essa lógica na qual intervêm a
desordem, a incerteza, a indeterminação e o acaso como fatores de auto-organização e de organização superior.
Um terceiro princípio fundamental para a compreensão da complexidade é o anel recursivo ou recorrente. Por esta noção se explicam os processos de auto-eco-exo-organização e de autoprodução. Nesses processos os efeitos retroagem sobre as causas, determinando que os produtos sejam produtores daquilo que os produz. O produto é produtor do próprio processo que o produz. Esse fato gera a chamada causalidade circular recursiva que nos ajuda a compreender um processo inflacionário ou um fenômeno físico como o redemoinho, em que cada momento é, ao mesmo tempo, produto e produtor do momento seguinte.
Os princípios da dialógica, da hologramaticidade e da recursividade são denominados por
Morin de palavras-princípio pelo alto grau de complexidade e de mistério que contêm. Tais princípios epistemológicos incorporam, superam e ultrapassam a epistemologia cartesiana e mostram as condições de uma visão complexa. Esses operadores cognitivos possibilitam ampliar o foco e o campo de observação, de análise e de compreensão e, portanto, podem servir de base para a ressignificação do processo de conhecimento na educação escolar.
Ao levarmos em conta os postulados do pensamento complexo, sobretudo os princípios
organizadores do conhecimento pertinente que possibilitam religar os saberes e lhes dar sentido, é
que podemos pensar numa organização de uma educação escolar centrada no paradigma da
complexidade, que tenha como meta-fim garantir aos educandos a formação de uma cabeça bemfeita, desenvolvendo a aptidão geral para contextualizar e globalizar o conhecimento, ou seja,
para compreender e solucionar os problemas.
Referências
 
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_____. Para além da globalização e do desenvolvimento: sociedade mundo ou império mundo?
In: CARVALHO, E. de Assis e MENDONÇA, T. Ensaios de Complexidade 2. Porto Alegre: Sulina, 2003. p. 7-26.
MORIN, Edgar, MOIGNE, Jean-Louis de. A inteligência da complexidade. São Paulo: Peirópolis, 2000.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.

O desafio escolar do ensino por disciplina


O desafio escolar do ensino por disciplina e a necessidade da religação dos saberes

Óberson Isac Dresch1

Celso José Martinazzo2




Resumo:



Neste texto propõe-se uma reflexão sobre o desafio da escola em trabalhar a questão do conhecimento sob a forma de disciplina e a necessidade da religação dos saberes. Dentre as múltiplas tarefas que, historicamente, sempre foram atribuições da educação escolar, destaca-se o compromisso com a assimilação, a transmissão e a produção de conhecimentos. Essa tarefa é muito complexa e tem gerado constantes debates e polêmicas recorrentes. Quando se refere à escola como uma agência privilegiada que lida, direta e fundamentalmente, com a questão do conhecimento, depara-se com inúmeras implicações e possibilidades decorrentes dessa afirmação. Procura-se interpretar essas implicações e possibilidades à luz das contribuições dos princípios da teoria da complexidade por se entender que essa matriz paradigmática se constitui, hoje, num dos referenciais privilegiados para compreender o processo de assimilação e produção de um conhecimento pertinente, ou seja, de um conhecimento que, ao mesmo tempo em que distingue, busca promover a religação dos saberes.

Palavras-chave: Complexidade. Educação escolar. Conhecimento. Disciplinas. Religação.
THE SCHOOL CHALENGE OF TEACHING PER SUBJECT AND THE NEED FOR
KNOWLEDGE REBINDING
Summary:
 
 
 
 
 


 
 

In this paper we propose a reflection on the challenge of school to work the question of knowledge in the form of a subject and the need for rebinding the knowledge. Among the many tasks that
historically have always been tasks of school education, there is the commitment to assimilation, transmission and production of knowledge. This task is very complex and has generated constant
debates and recurring controversies. When referring to the school as a privileged agency dealingdirectly and primarily with the issue of knowledge, many implications and possibilities arising from
this statement are faced. It is sought to interpret these implications and possibilities in the light of the contributions of the principles of complexity theory due to the understanding that this paradigmatic
matrix is today one of the privileged references for understanding the process of assimilation and production of relevant knowledge, i.e., a knowledge that, while distinguishing, seeks to promote the
rebinding of knowledge.
Keywords: Complexity. School education. Knowledge. Subjects. Rebiding.
1 Graduado em Filosofia e Teologia e mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí. obersac@yahoo.com.br
2 Professor do Departamento de Humanidades e Educação e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação nas Ciências da Unijuí. marti.sra@terra.com.br; martinazzo@unijui.edu.br
“Parece que sabia que sem inquietação não há questionamento, e que sem questionamento não se encontram alternativas, não se abre o leque de possibilidades”
(Cury, 2008, p. 24).
Introdução
 
 
Ao olhar para as instituições escolares nos dias atuais, frequentemente percebe-se análises e comentários que apontam para um cenário de constantes mudanças, inovações, informatização, descobertas científicas e avanços tecnológicos. Mais que uma mudança de época, tem-se aí configurada uma época de mudanças, acompanhada de indagações e incertezas. Então, como agir em meio a esse processo, uma vez que se é tambémcondicionado e guiado por ele? Que comportamentos adotar a fim de não se tornar meramente reféns da história que está sendo pensada e construída? Mais particularmente, o que aeducação escolar, especialmente por meio de seus profissionais, pode esperar e,principalmente, fazer?
Para pensar essa problemática, tem-se como base o paradigma da complexidade, cuja referência principal é para os autores, o pensador francês Edgar Morin. A partir de então o conceito-chave escolhido é o da (re)ligação, que está associado à palavra de origem latina
complexus, traduzida como “aquilo que é tecido em conjunto”. O verbo complectere, cuja raiz plectere significa trançar, enlaçar, também endossa essa ideia. No caso, a presença do prefixo com representaria o sentido de dualidade entre dois elementos trançados, enlaçados ou entrelaçados intimamente.
Ao projetar caminhos para a educação escolar atual, a noção de “tecido” é algo a ser considerado, pelo fato de propor a religação entre os saberes ou questões presentes nesse
contexto. Há saberes que precisam ser (re)ligados a fim de se cogitar uma compreensão diferente acerca do conhecimento. Assim, promover a religação nos diferentes níveis e situações de aprendizagem é uma instigante diretriz para a função de educadores. Sem ignorar a importância do caráter disciplinar do conhecimento, busca-se incentivar um pensar que compreenda e envolva as disciplinas, articulando-as num diálogo entre si e com os respectivos contextos.
Disciplinas: necessárias, porém insuficientes

As disciplinas assumem um papel importante na formação cognitiva das pessoas. Em seu propósito educativo, elas possibilitam aos estudantes se aproximarem e conhecerem diversos saberes já consolidados pela tradição e/ou corroborados pela ciência, os quais constituem a herança que vai sendo transmitida de geração em geração, levando adiante o patrimônio intelectual da humanidade.
Situadas e englobadas no contexto escolar, as disciplinas são partícipes do processo constitutivo do homem e da humanidade, grande finalidade da educação. Savater, ao abordar a questão da condição humana, escreve que “nascemos humanos, mas isso não basta: temos também que chegar a sê-lo” (2005, p. 25-26). Por essa razão, ao pensar a condição da pessoa, pensa-se também a educação e vice-versa. Daí a necessidade de garantir a todos o acesso à escola, à aprendizagem, ao desenvolvimento intelectual, físico, social e cultural proporcionado pelas instituições de ensino. O conhecimento trabalhado na escola propicia ao aluno ir crescendo em humanidade. Nesse sentido, destaca Savater que “ser humano consiste na vocação de compartilhar com todos o que já sabemos, ensinando os recém-chegados ao grupo o que devem conhecer para se tornar socialmente válidos” (2005, p. 31). Em síntese, o ato pedagógico contribui decisivamente no desenvolvimento humano dos sujeitos, abrangendo suas múltiplas dimensões.
Young, analisando mais especificamente a herança e riqueza disciplinar, reforça essa reflexão. Segundo ele, as disciplinas
 
não só oferecem a base para analisar e fazer perguntas sobre o mundo, como também oferecem aos estudantes uma base social para um novo conjunto de identidades como aprendizes. Com as novas identidades referentes às disciplinas, que os estudantes
adquirem pelo currículo, acrescentadas àquelas com que vieram para a escola, eles têm mais probabilidades de serem capazes de resistir ao senso de alienação de suas vidas cotidianas fora da escola ou, ao menos, melhor lidar com ele. A escola pode promover tal capacidade (2011).
Quando se coloca a educação escolar em discussão é necessário ter presente que existe uma herança a ser ensinada, transmitida, que diz respeito ao passado da humanidade. Sem ele, permanece uma lacuna na preparação da pessoa enquanto ser humano. Também convém pensar o que está por vir, não no sentido de prever ou querer fugir da realidade atual, mas como projeto de vida futura. Entram aí as esperanças, sonhos, ideais, metas e desejos para o
futuro. E, ainda, é necessário olhar para o presente, o contexto do qual se faz parte, a cultura, a diversidade que existe, os interesses em jogo, os resultados obtidos, os aspectos positivos e as dificuldades, enfim, para tudo aquilo que constitui o momento e o espaço em que se está inserido.
Toda essa riqueza preservada não exclui a possibilidade de novas ideias, novos modos de pensar, de interpretar, de sentir, de acreditar e de ser. E, mais do que isso, ela não elimina a chance de que teorias sejam colocadas sob suspeita, com algumas delas, inclusive, sendo refutadas em alguns casos. Existe, portanto, em meio a todo o conhecimento já consolidado, a presença potencial do erro, do engano, da incerteza, da ilusão. Até mesmo quando parecem
esgotadas todas as possibilidades de conhecimento, permanece algo indecifrado e/ou indecifrável. Como observa Morin: “Após toda explicação, todo esclarecimento, toda racionalização, o caráter enigmático persiste. Resolvido o enigma, esta própria solução se
torna o grande enigma” (2003, p. 24).
Isso convida a pensar as disciplinas como algo que integra dinamicamente dois importantes movimentos que acompanham as inúmeras investidas pelos saberes: distinguir e associar. Estas são dimensões muito caras para o conhecimento. Se, por um lado, é necessário que se separe e se distinga, por outro, como deixar de lado a síntese e reunião dos elementos?
Tem-se, portanto, uma dupla qualidade interligada, e a predominância exacerbada de um desses aspectos sobre o outro pode ter, como consequência, o empobrecimento e a mutilação
do conhecimento.
Nas palavras de Marques (2006, p. 41),
a complexidade que se busca não é a negação da necessária análise-decomposição dos elementos em jogo; é, antes, a consciência operante de que há elementos em jogo, em interação, irredutíveis uns aos outros, diversificados e, como tais, intercomplementares e necessários à compreensão do que se convencionou examinar à parte.  
Morin concorda que a distinção e a separação são necessárias para o processo de conhecer: “Precisamos distinguir, separar, esclarecer para conhecer. Nesse sentido, o ato primordial de conhecimento é um ato de separação, uma arrancada da confusão ou da imprecisão; é constituir uma/várias fronteiras” (1986, p. 112). E complementa o autor, entretanto: “é preciso, igualmente, relacionar. Os objetos não podem ser considerados como entidades isoladas. Sua própria existência depende de interações com outros ‘objetos’ e com seu meio” (Idem). Em síntese, conhecer reúne a dupla capacidade de distinguir/separar e, em seguida, relacionar o que foi distinguido/separado. O verdadeiro problema, todavia, apontado
por Morin, “é que nós aprendemos muito bem a separar. É melhor reaprender a religar” (apudPENA-VEGA; ALMEIDA; PETRAGLIA, 2003, p. 52).
Essa chave de leitura ajuda a compreender as disciplinas do conhecimento, mais especificamente aquelas que constituem a estrutura curricular das escolas. É possível trabalhar questões complexas com e nas disciplinas escolares? Pode a disciplina ser complexa, mesmo enquanto disciplina? A fim de continuar refletindo sobre essas perguntas, destaca-se duas características: a disciplina enquanto um saber especializado e insuficiente. Graças à gradual especialização dos saberes, a humanidade fez múltiplas descobertas e obteve muitos avanços.
Paralelamente, constata-se que essa especialização, que, em determinados casos atingiu níveis mais minuciosos e profundos, não é suficiente por si só. De outra forma, por mais detalhada e
apurada que seja, a especialidade precisa estabelecer vínculos, a fim de não se esclerosar com o tempo.
Morin (2009) concorda que a disciplinaridade tem se mostrado fecunda na história da ciência. Prova disso é sua capacidade de lidar com casos bem delimitados, sendo mais incisiva e precisa em seus estudos ou investigações, encontrando respostas pontuais e provas convincentes. Ou seja, “a disciplinaridade delimita um domínio de competência sem o qual o conhecimento tornar-se-ia fluido e vago” (p. 40). O autor pondera que ela também “desvenda,
extrai ou constrói um ‘objeto’ digno de interesse para o estudo científico” (Idem). Deduz-se, pois, que é preciso considerar o recorte que é feito, esse “objeto construído”. Toma-se uma
parcela da realidade para poder investigá-la, no entanto outros campos ficam em aberto. Eis, aí, um indício da insuficiência da disciplina.
Em Young (2011) encontramos mais ideias para debater essa questão. Esta realmente se constitui num debate, visto que a leitura predominante em muitos textos que abordam a problemática da complexidade faz unicamente a crítica ao caráter disciplinar do
conhecimento, enquanto que, aqui, visa-se a encontrar elos entre as disciplinas e o pensamento complexo. Um primeiro ponto apresentado pelo autor é que “as disciplinas são entidades históricas dinâmicas que mudam com o tempo”, o que leva a considerar as
influências que o contexto histórico e cultural exerce sobre elas. Sendo assim, as disciplinas não ficam presas a um “cânone fixo definido pela tradição, com conteúdos e métodos imutáveis”. Ressalta Young, entretanto, que “isso não significa que seja possível haver uma matéria ou uma disciplina sem algum tipo de ‘cânone’ de textos, conceitos e métodos acordados”. Conclui ele que “o cânone em si tem uma história e, embora não seja fixo e
imutável, tem uma estabilidade, bem como uma abertura em que os estudantes podem apoiarse ao estabelecerem suas identidades” (2011).
As disciplinas, mesmo com as suas fronteiras estabelecidas para investigar aspectos do mundo ao longo do tempo, oferecem referenciais básicos para os alunos realizarem suas análises e levantarem perguntas acerca da vida e do mundo. Não é esse um meio de a escola promover a capacidade de um pensar aberto, que traga consigo a herança do passado e que esteja preocupado com problemas da atualidade mas que, inclusive, possam ter efeitos no
futuro? Ao trabalhar a disciplina acompanhada de seus contextos, a educação escolar não está contribuindo para a promoção de um entendimento complexo? E, ainda: “Como é que, em um currículo baseado em disciplinas, os alunos adquirem os recursos para ‘fazer conexões’ eganhar um senso do mundo como um ‘todo’?” (YOUNG, 2011).
O autor, inicialmente, aponta para a possibilidade de os professores desenvolverem “a capacidade de conectar ou ‘atravessar fronteiras’”. Isso não significa que a sua disciplina seja deixada de lado. Pelo contrário, os educadores assumem uma posição privilegiada ao realizarem estudos no contexto de suas disciplinas, porém é ainda mais importante quando se dão conta de que o conhecimento da vida e do mundo vai muito além dos limites de seu componente curricular. Ao entrar em outros espaços disciplinares o educador tem presente as respostas e perguntas suscitadas em seu componente. Ele cria uma identidade com o seu
objeto de estudo, que tende a ser reforçada na medida em que vai aprofundando a pesquisa, buscando conhecer diferentes possibilidades de entendimento e de explicação. As dúvidas e
os problemas que surgem, além de estimularem o aprofundamento disciplinar, fomentam uma incursão “além fronteiras”, o que é um ponto de partida para firmar vínculos e ligações com outras disciplinas, em vista de uma aproximação com a complexidade existente.
Origina-se, assim, uma interdisciplinaridade. Não se trata daquela interdisciplinaridade que emerge de maneira forçada a partir de algum princípio externo imposto, mas que brota do próprio crescimento do conhecimento, ou seja, das suas potencialidades desenvolvidas e da abertura em relação às limitações cognitivas encontradas na disciplinaridade. Dessa forma, a relação entre as disciplinas ocorre com base nas interrogações levantadas na própria disciplina e que ela, por si só, não consegue resolver. Se isso faz sentido, a interdisciplinaridade é muito mais o resultado de situações-problema que se colocam a ser pensadas conjuntamente pelas disciplinas do que propriamente da boa-vontade de se reunir, escolher um tema ou conteúdo e trabalhar coletivamente.
Paviani (1986) entende que a existência das disciplinas, embora seja justificada por razões histórias e didáticas, não garante que elas sejam concebidas ou transformadas em fins em si mesmas. O autor argumenta ainda que o conhecimento não chega a ser um instrumento de solução de problemas que afligem o ser humano e a sociedade apenas por tratar sobre algo de modo a repetir dados, informações, conceitos, princípios e teorias. Ou seja, isso nãopermite, por si só, “uma efetiva contribuição qualitativa na melhoria cultural e material da vida humana” (p. 80). Também conforme o autor, “o fundamental, em termos pedagógicos e
do progresso científico e filosófico, reside na afirmação popperiana de que ‘estudamos problemas, não matérias: problemas que podem ultrapassar as fronteiras de qualquer matériaou disciplinas’” (Idem).
Encontramos aí um argumento que reforça a importância dos limites ou fronteiras do conhecimento disciplinar. Estes precisam ser vistos não numa perspectiva negativa, como se fossem barreiras intransponíveis, e sim como elos que possibilitam a continuidade da investigação, do estudo, da descoberta. Diante disso, novas questões surgem e outras voltam à tona: Teriam esses limites e fronteiras alguma relação com as incertezas que acompanham o
conhecimento? O complexo, na sua qualidade de religação, de aproximação do que é separado, distinto, não se apresenta potencialmente presente mesmo entre as disciplinas? O saber disciplinar, criticado por esse movimento pedagógico renovador, que aponta unicamente para o poli/inter/pluri/transdisciplinar não é, exatamente, a base de um pensar complexo?
Cabe, neste momento, uma valiosa ressalva: ao cogitar tais perguntas, a noção que se tem de disciplina não é a de um fim, ou então como sinônimo de conhecimento pleno, enciclopédia do saber. Em outras palavras, o que está em jogo não é chegar ao conhecimento geral, ficando preso aos contornos de um saber isolado. Como promover, no entanto, um conhecimento mais amplo e complexo se ignoramos a especialidade, a disciplinaridade, a
identidade e riqueza particular de um conhecimento? Enfim, escreve Young: “Se você realmente dominar o violino ou o violoncelo, você tem acesso à música que está além de seu
instrumento. É isso que penso em relação às disciplinas” (2011).
A fim de continuar esta reflexão, recoloca-se a afirmação citada anteriormente sob um tom interrogativo. É possível conhecer além do instrumento ficando atrelado a ele? Como superar a fronteira disciplinar? Esta, com sua linguagem e conceitos próprios, não estaria isolando uma disciplina das outras, bem como dos problemas e questões que estão para além de seus contornos? Talvez seja esse o paradoxo que acompanha as disciplinas, a ciência e a própria vida, e que exige que essas sejam, ao mesmo tempo, fechadas e abertas. Não seria ele o responsável por evitar que a disciplina se torne algo estanque e estéril? Conclui, ainda,
Morin: “Para que nos serviriam todos os conhecimentos parcelares se não os confrontássemos uns com os outros, a fim de formar uma configuração capaz de responder as nossas expectativas, necessidades e interrogações cognitivas?” (2009, p. 51).
Em outro texto, o autor defende que “podemos isolar os elementos que constituem a realidade, porém, cada vez mais, percebemos que eles estão ligados uns aos outros. De alguma forma, as coisas separadas são ligadas e as coisas ligadas são igualmente, de um certo modo, distintas” (MORIN apud PENA-VEGA; ALMEIDA; PETRAGLIA, 2003, p. 51). Tal perspectiva mostra-se razoável no sentido de evitar que a investida pelo conhecimento desande em excessos ou extremos. A dinâmica “isolar-ligar” impede que os saberes sejam esfacelados, fragmentados, enclausurados, o que poderia representar sua exclusão. De outro lado, a dinâmica “ligar-distinguir” evita que tudo seja entendido de forma genérica, ou seja, englobando-se todas as coisas sem a necessária distinção.
O pensamento complexo “deve ultrapassar as entidades fechadas, os objetos isolados, as idéias claras e distintas, mas não deve deixar-se encerrar na confusão, no vago, na ambigüidade, na contradição” (MORIN, 2005, p. 430). Assim, quem sabe, seja possível evitar deslizar para extremos que, de um lado, alimentam modelos unicamente fechados e, de outro, desandam para a aleatoriedade desenfreada, capaz de gerar um estado caótico irreversível.
A mudança pensada e proposta por Morin não equivale à supressão das disciplinas, mas na sua religação e no seu revigoramento: “A reforma que visualizo não tem em mente suprimir as disciplinas, ao contrário, tem por objetivo articulá-las, religá-las, dar-lhes vitalidade e fecundidade” (2009, p. 35). Uma vez que se aprende muito bem a separar, a isolar, a analisar, a especificar, é necessário, agora, aprender com a mesma maestria a religar.
Parece ser esse o caminho da mudança de paradigma. Em síntese, arrisca-se afirmar que o conhecimento pertinente passa por essa constituição de ligações entre os saberes disciplinares, ao passo que as disciplinas isoladas revelam-se cada vez mais insuficientes.
A propósito da reforma do pensamento, Morin, em entrevista concedida a Juremir Machado da Silva, sustenta que “todas as reformas começam marginalmente na medida em que existe uma contradição” (1997, p. 85). A reforma dos “espíritos humanos” é possível por meio das reformas nas instituições, e estas ocorrem se forem reformados os espíritos. Tem-se, assim, formada uma espécie de círculo vicioso (ou seria virtuoso?), que representa a
contradição que acompanha todo processo de transformação. É justamente na decisão de promover uma novidade, entretanto, de criar uma nova instituição, uma outra experiência nos diferentes níveis de ensino, que pode ser dimensionado um caminho inovador para a reforma nos termos propostos pela perspectiva moriniana.
Aprender a pensar de forma complexa requer a inserção prévia das instituições de
ensino nesse paradigma. A cabeça bem-feita só é possível quando o próprio ensino se coloca num processo de ampliação e aprofundamento do seu pensar, passando a incorporar e valorizar outras dimensões cognitivas; quando o processo de ensino, de forma ainda mais radical, dispõe-se a reaprender, a se reensinar, enfim, a se reformar e a conhecer o processo de
conhecimento. Nesse contexto, ele alarga sua missão, que, de mera transmissão de saberes já formulados, passa a buscar constituir “uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre”
(Morin, 2004, p. 11).
Mesmo reconhecendo que a reforma depende desse elo recorrente entre instituição e espírito humano, entende-se que a mudança começa com os próprios educadores. São eles que devem ser os precursores, seja no aprofundamento do conhecimento no âmbito da própria disciplina, seja na criação de ligações com outros componentes, bem como nas relações com outros professores. Apenas alerta-se que esses elos não equivalem a vínculos forçados que, por vezes, são estabelecidos entre professores e suas disciplinas. Antes de qualquer coisa, eles são frutos da compreensão de que o conhecimento parcelar não é suficiente para tratar problemas mais amplos de interesse da vida planetária.
Com base nesses argumentos, considera-se que é uma tarefa imprescindível em todo o processo de educação escolar repensar a estrutura paradigmática responsável pela assimilação, apropriação e produção de conhecimentos e que determina, igualmente, a própria
compreensão da realidade. A finalidade da ação dos educadores, diferentemente, é fornecer aos educandos “uma cultura que lhes permitirá articular, religar, contextualizar, situar-se num contexto e, se possível, globalizar, reunir os conhecimentos que adquiriram” (MORIN, 2009,p. 31). Isso envolve levantar e pensar problemas que encontram algumas pistas dentro das disciplinas, mas que exigem transgredir a disciplinaridade, buscando alternativas de respostas no diálogo dos saberes. Assim, insiste-se na proposta de uma educação escolar disposta a
 conceber de modo dialógico3 os saberes, as disciplinas, as relações pessoais, o local e o global, enfim, aquilo que se encontra, de um modo ou de outro, envolvido com o conhecimento.
Disciplinas em diálogo no Novo Ensino Médio: sinal de um conhecimento pertinente?
Desde o ano de 2012, no Estado do Rio Grande do Sul, convive-se com novidades e
interrogações que acompanham a implantação do Ensino Médio Politécnico. O ano iniciou com os professores apreensivos e cheios de dúvidas. Afinal, o que seria esse “Novo Ensino Médio”? O que proporcionaria aos estudantes, professores, escolas e comunidades? Como poderiam estar sendo desenvolvidos nesse nível de ensino os projetos de pesquisa? Haveria uma estrutura física adequada para atender aos alunos? E os educadores, em geral, já se encontrariam preparados para fazer pesquisa científica/escolar com os educandos?
Notava-se que existiam muitos elementos em jogo. A pesquisa, que entrou como o “carro-chefe” nesse processo de reestruturação do ensino, representava e representa ainda um desafio a todos, pois instiga a ampliar, aprofundar e/ou modificar a maneira tradicional de ensinar. Até porque, mais que respostas prontas, ela reitera a tese de que perguntas bem feitas
3 O modo dialógico, neste texto, não é utilizado com a conotação de comunicação ou diálogo intersubjetivo.
Refere-se ao princípio dialógico que, na teoria da complexidade, funciona como um operador da compreensão complexa. A dialogia revela que a realidade se compõe de duas ou mais dimensões antagônicas, concorrentes e, ao mesmo tempo, complementares. O pensar dialógico religa posições opostas e ambivalentes em vez de ignorálas
  ou negá-las.
são necessárias, pois estimulam os alunos e professores pesquisadores, bem como toda a
comunidade escolar, a pensarem e projetarem coletivamente possíveis alternativas de qualificação e de educação das pessoas.
Em relação a isso, indaga-se se tal modelo tem ajudado a constituir um conhecimento pertinente, capaz de interligar e contextualizar os diferentes saberes. As disciplinas, por sua vez, estão criando uma maior sintonia e articulação entre si? As fronteiras e limitações da
disciplinaridade estão sendo envolvidas pela interdisciplinaridade? Antes de continuar com tais questões, talvez seja conveniente elucidar um pouco o que se entende por conhecimento pertinente. Isso pode facilitar uma possível avaliação acerca da caminhada empreendida até o momento.
Uma primeira consideração a ser feita é que, quando se fala em um saber pertinente, a referência é a uma proposta entendida sob a ótica da complexidade. Sua pertinência, portanto, está ligada ao contexto epistemológico orientado pelo conceito do complexo. Ela não corresponde ao fato de envolver muitas informações, conforme afirma Morin: “Um conhecimento não é pertinente porque contém uma grande quantidade de informações. Ao contrário disso, nos damos conta que, freqüentemente, somos submergidos pela quantidade de informações transmitidas pela televisão” (2009, p. 85). Então, o que estaria indicando sua pertinência?
Uma resposta possível pode ser encontrada em outra obra do autor, na qual ele resume:
 
O conhecimento pertinente é o que é capaz de situar qualquer informação em seu contexto e, se possível, no conjunto em que está inscrita. Podemos dizer até que o conhecimento progride não tanto por sofisticação, formalização e abstração, mas, principalmente, pela capacidade de contextualizar e englobar (MORIN, 2004, p. 15).
Essas são questões difíceis de serem respondidas. Entende-se, todavia, que um
 indicativo de resposta passa pela insistência no caráter complexo do conhecimento. Ou seja, se não se conhece qual o melhor rumo a ser tomado, uma opção razoável talvez seja o estabelecimento de relações, ligações, conexões e elos entre disciplinas, grupos, instituições, práticas, visando o máximo de abertura para a teia complexa do conhecimento. Isso sugere entrar no dinamismo dialógico ininterrupto do pensamento, que, segundo Morin (2008),
estabelece e atravessa fronteiras, abre e fecha conceitos, vai das partes ao todo e do todo às partes, duvida e crê; recusa e combate a contradição, ao mesmo tempo em que a assume e dela se alimenta.
A pertinência do conhecimento não está na excelência e exclusividade de um único modo de conhecer, mas na capacidade de trabalhar com uma gama de possibilidades. Por isso, a compreensão que resulta da e na complexidade pode ser caracterizada como plural, mas sem perder sua especificidade. Pensar não é seguir um percurso predefinido, baseando-se em um
plano tido como padrão. Ao contrário, “pensar é construir uma arquitetura das idéias, e não ter uma idéia fixa. [...] Pensar é reconhecer a validade e situar no mesmo plano a ideia antagônica
ou contrária e a idéia poética e genial” (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 38).
O pensar pertinente está atento à multidimensionalidade dos fenômenos e das disciplinas; disponível até mesmo àquilo que vai além dos limites da racionalidade, ou seja, aos mistérios, às crenças, às sensações. Essa seria, então, a cara da complexidade, o jeito do pensamento complexo, um pensamento que reconhece “a presença do observador/conceituador na observação/concepção, isto é, a presença do sujeito no objeto”
(MORIN, 1986, p. 113). Em suma, um pensar que conduz o sujeito a pensar seu próprio pensamento, a pensar-se ao pensar, a conhecer-se ao conhecer.
Uma das características a ser incorporada pela escola inspirada na teoria da complexidade é a relativização dos métodos de ensino-aprendizagem tradicionais, em busca de procedimentos mais abertos, flexíveis e contextuais. Refere-se aqui a suspender o mero
instrucionismo, que equipara conhecimento à assimilação de informações, dando mais espaço para a dimensão autopoiética dos estudantes e dos próprios professores, todos aprendentes. Os
“burocratas da educação”, afirma Alves, “sempre imaginam que os professores serão ‘capacitados’ se mais saberes lhes forem acrescentados. Jamais lhes passa pela cabeça que aquestão não é somar saberes, mas subtrair saberes [...], para que possam ver as coisas que nunca viram” (2003, p. 32).
Uma experiência autopoiética que vem sendo intensificada no Rio Grande do Sul desde 2012 é a dos projetos de pesquisa organizados a partir do componente curricular de Seminário Integrado. Tal iniciativa visa a estimular, desde o nível médio de ensino, odesenvolvimento da capacidade investigativa de estudantes e professores. Busca, ainda, um comportamento diferente dos envolvidos nesse processo, que passam a enxergar a pesquisa como um princípio pedagógico. Esta vem somar forças e qualificar ainda mais o papel do ensino dos saberes já consolidados, que constituem o patrimônio do conhecimento. Em meio a esse contexto, cabe muito bem a ideia desenvolvida por Paviani, quando este autor aponta para a problematização do conhecimento a ser realizada conjuntamente pelos educadores e educandos, a fim de que possam testar seus saberes em relação à realidade da qual fazem parte. Conforme o autor, “[...] aluno e professor precisam saber problematizar o próprio conhecimento adquirido, isto é, pô-lo em constante confronto com a realidade, procurar verificar até que ponto podemos explicar ou interpretar com esses conhecimentos o
mundo que nos cerca” (1986, p. 81).
A pesquisa, obviamente que em um nível introdutório, tem instigado gradualmente os estudantes a lançar um olhar de curiosidade sobre a realidade do mundo em que vivem, buscando, a partir disso, formular perguntas e buscar respostas para questões que consideram importantes. Isso tem gerado neles uma certa inquietude, alimentando, consequentemente, um espírito de busca por informações, argumentos, justificativas, teorias, alternativas e soluções para suas dúvidas e interrogações. Trata-se de algo a ser celebrado, justamente por encorajar os alunos e professores pesquisadores a aprender. Como afirmam Assmann e Sung (2000), os desafios, contrariamente às ameaças inibidoras, fomentam a aprendizagem complexa.
Concomitantemente, a prática de pesquisa propicia o desenvolvimento de uma atitude científica, despertando e/ou aperfeiçoando habilidades. Enfim, esse trabalho tem potencializado, entre os envolvidos, a capacidade de interpretar, analisar, criticar, refletir, rejeitar ideias fechadas, ensinar/aprender, buscar soluções e propor alternativas para problemas concretos que acompanham sua existência e que necessitam respostas e novas
perguntas. Roland Barthes, segundo Alves (2003), teria pronunciado, em sua famosa “Aula”, as seguintes palavras iluminadas: “Há uma idade em que se ensina o que se sabe; vem, em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agoraa idade de uma outra experiência, a de desaprender” (p. 29).
A educação escolar, por sua vez, pode fazer parte dessa caminhada de revisão e de reflexão. Há saberes a serem sabidos, “des-sabidos” e “re-sabidos”. Há perguntas a serem feitas, desfeitas e refeitas. Sendo assim, “a finalidade de nossa escola é ensinar a repensar o
pensamento, a ‘des-saber’ o sabido e a duvidar de sua própria dúvida; esta é a única maneira de começar a acreditar em alguma coisa” (MAIRENA apud MORIN, 2004, p. 21). Ao seguir por esse caminho, a escola concebe a aprendizagem como a conjugação entre o conhecido e o desconhecido. Nas palavras de Morin, “aprender não é somente reconhecer o que, virtualmente, já era conhecido; não é apenas transformar o desconhecido em conhecimento. É
a conjunção do reconhecimento e da descoberta. Aprender comporta a união do conhecido e do desconhecido” (2008, p. 70, grifo do autor).
Organizar e realizar uma educação inspirada nos princípios da complexidade exige muito de todos os educadores. Afinal, é necessário aprender a lidar com saberes que são mais que saberes; a investigar problemas que não dizem apenas a respeito do professor; a conhecer e ministrar disciplinas que vão além das disciplinas isoladas; a pensar questões que são de
ordem planetária; a buscar certezas acompanhadas de incertezas, bem como mergulhar nas
incertezas sem abrir mão da busca de certezas; enfim, a visar o complexus sem deixar de simplificar quando se fizer necessário.
Para não concluir
Entre tantas questões que foram levantadas no texto, é possível encontrar um elo fundamental entre elas: o zelo pelo conhecimento. Em cada ideia apresentada, parágrafo
elaborado, pergunta levantada, reflexão feita... existe uma carinhosa preocupação com a instigante temática/problemática do conhecimento, procurando analisar, mais pontualmente, o lugar que este assume na educação escolar.
A educação escolar é desafiada, pois, a se constituir num processo capaz de gerar um ser humano em sintonia com sua época, atento aos diferentes saberes que se colocam lado a lado diariamente. Educar para a vivência em meio a esse contexto complexo implica um forte questionamento ao conhecimento fechado, fossilizado, estanque, padronizado, desconectado do todo, que impossibilita um diálogo enriquecedor e construtivo nos ambientes educativos.
Todo o cuidado parece pouco quando o que está em jogo é a educação, pois é pela mediação dela que a vida local e planetária pode ir sendo construída num desafio constante à perfectibilidade humana. Em suma,
[...] educar é crer na perfectibilidade humana, na capacidade inata de aprender e no desejo de saber que a anima, é crer que há coisas (símbolos, técnicas, valores, memórias, fatos...) que podem ser aprendidas e que merecem sê-lo, que nós, homens, podemos melhorar uns aos outros por meio do conhecimento (SAVATER, 2005, p. 22).
Deseja-se que a reflexão aqui desenvolvida e os desafios analisados no texto tornem-se
importantes referências para que se continue pensando seriamente a educação escolar na perspectiva da complexidade.

Referências
ALVES, Rubem. A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. 5.
ed. Campinas, SP: Papirus, 2003.
ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Competência e sensibilidade solidária: Educar para a esperança. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
CURY, Augusto. O vendedor de sonhos. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.
MARQUES, Mario Osorio. Pedagogia: a ciência do educador. 3. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 10. ed.
Traduzido por Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
_____. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. ALMEIDA, Maria da
Conceição de; CARVALHO, Edgard de Assis (orgs.). 5. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
_____. O Método 2: a vida da vida. Traduzido por Marina Lobo. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.
_____. O Método 3: o conhecimento do conhecimento. 4. ed. Traduzido por Juremir
Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2008.
_____. Para sair do século XX. Traduzido por Vera de Azambuja Harvey. 30. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
_____. X da questão: o sujeito à flor da pele. Traduzido por Fátima Murad. Porto Alegre, RS:
Artmed, 2003.
MORIN, Edgar; CIURANA, Emilio-Roger; MOTTA, Raúl Domingo. Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco, 2003.
PAVIANI, Jayme. Problemas de Filosofia da Educação. 3. ed. Caxias do Sul: Educs, 1986.
PENA-VEGA, Alfredo; ALMEIDA, Cleide R. S.; PETRAGLIA, Izabel (orgs.). Edgar
Morin: Ética, Cultura e Educação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
SAVATER, Fernando. O valor de educar. Traduzido por Monica Stahel. São Paulo: Planeta do Brasil, 2005.
SILVA, Juremir Machado da. Edgar Morin, o mestre da complexidade (Entrevista de Juremir
Machado da Silva a Edgar Morin). Estudos Leopoldenses, Série Educação, São Leopoldo, RS: Unisinos, n. 1, vol. 1, p. 81 – 92, 1997.
YOUNG, Michael F. D. O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas. Revista Brasileira de Educação [online]. 2011, vol.16, n.48 [citado 2012-10-17], p. 609-623. Disponível em:
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